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Business Transformation Culture and Leadership
Como a burocracia está a travar a agilidade nas organizações

Como a burocracia está a travar a agilidade nas organizações

Susana Carvalho | Culture Setting | Managing Partner

Fala-se hoje muito acerca da necessidade de agilidade nas organizações, e muitas são as empresas a fazerem grandes investimentos nesse sentido. Para criar organizações mais ágeis é fundamental estar muito consciente do papel e dos riscos da burocracia, e o que é necessário fazer a montante para minimizar alguns dos seus efeitos negativos.

Depois do lançamento do último livro do Gary Hamel – https://www.humanocracy.com/sites/default/files/2020-08/Humanocracy-preface-ch1.pdf-, e de ter assistido à palestra que deu na London Business School, durante o 1º confinamento – Humanocracy: Creating organisations as amazing as the people inside them-, fui revisitar o sempre atual e apaixonante Michel Crozier (The Bureaucratic Phenomenon, 1964), para me relembrar das razões por detrás da permanência da burocracia nas organizações, até aos dias de hoje.

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“Para criar organizações mais ágeis é fundamental estar muito consciente do papel e dos riscos da burocracia (…)”
O que define a burocracia

Se no passado o modelo burocrático de empresa possibilitou a padronização, a estabilidade e o consequente crescimento e globalização, hoje chamamos burocrática a uma organização, quando esta não dispõe da agilidade necessária para corrigir os seus erros ou ineficiências e para aprender; ou porque não tem sistemas de feedback, ou porque tendo-os, os fluxos de informação e de trabalho para correção desses erros são ineficientes.

Entre uma burocracia próxima do modelo taylorista, e uma start-up ou holacracia, há todo um espectro de comportamentos ou manifestações burocráticas. Quanto mais centralizadas estiverem as decisões, e o poder e a liderança menos distribuídos; quantas mais regras, tácitas ou formais, existirem, limitando ao máximo a liberdade de atuação e a criatividade; quanto mais verticalização existir e silos organizacionais, e menos interdependência e colaboração; e, finalmente, quanto maiores as fontes paralelas de poder, por parte de pessoas ou grupos de especialistas que dominam áreas de conhecimento e/ou campos de atuação, que nem sempre é questionado – e que outros não controlam, mas do qual dependem –, maior é o círculo vicioso da burocracia. Estes 4 fatores autorreforçam-se e, em contextos de maior pressão e/ou de maior incerteza, geram erros, problemas e resultados aquém do esperado por todos. Nestas situações, reforça-se a burocracia e aumenta-se o controlo – mais centralização, mais regras, mais silos e mais poder não questionado atribuído a alguns especialistas, reforçando o círculo vicioso da burocracia; tendo como consequência um reforço da conformidade.

Como as tendências e os novos paradigmas da gestão vão, já há algum tempo, no sentido da promoção da agilidade para fazer face às necessidades de adaptação ao contexto e à mudança, as empresas modernizaram-se e passaram a veicular e a reproduzir nas suas narrativas institucionais e no dia-a-dia essa modernização – que promovem e esperam maiores níveis de autonomia, de colaboração, de flexibilização e experimentação. Contudo, o gap entre o que se diz e o que se faz, é por vezes grande. E, mesmo organizações em sectores em grande mudança e velocidade, como o das Tecnologias da Informação, estão impregnadas de burocracia – têm a decisão e o poder mais centralizado, mais regras, silos, e mais poder não questionado atribuído a alguns especialistas, do que dizem ou do que acham possível e até lhes parece possível. Simplesmente porque em vez de explícito e formal, o comportamento burocrático é tácito, menos visível e algumas vezes inconsciente.

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“A burocracia está, na realidade, bastante mais imbuída nas organizações modernas do que imaginamos ou do que todos desejaríamos (…)”
A permanência da burocracia nas organizações

A burocracia está, na realidade, bastante mais imbuída nas organizações modernas do que imaginamos ou do que todos desejaríamos. Está presente, como resultado da necessidade histórica de aumentar a padronização, a estabilidade, a previsibilidade e a eficiência, o que só foi possível como resultado da regulação, em algum grau, do comportamento humano.

Mas o comportamento burocrático não está apenas nas estruturas, processos e modelos de gestão e de governação das empresas. As pessoas utilizam-no também para preservarem os seus interesses, a sua segurança e estabilidade; para protegerem os seus lugares nas organizações, numa luta pelo poder. Esta é uma das razões que explica porque é que na tentativa de se adaptarem à realidade, e em contextos de elevada incerteza, as organizações ficam tantas vezes aquém de o fazerem, mesmo quando racionalmente e em benefício de todos, tal é necessário e urgente para sobreviverem e ou serem bem-sucedidas.

As organizações são espaços políticos onde as pessoas fazem uso do seu poder e desenvolvem estratégias em benefício próprio e, por isso, são espaços muito menos racionais e eficientes do que se imagina, o que coloca desafios em matéria de governação. Felizmente não é só a política que define o campo organizacional e existem muitas formas legítimas de gerir a política e o poder, mobilizando as pessoas para uma missão e propósitos maiores que elas; mas isso já são outras matérias.

Crises internas ou externas, constituem excelentes oportunidades de mudança. Isso explica em parte a velocidade com que num espaço de tempo record, tantas organizações foram capazes de passar de um universo presencial e físico para um universo on-line e digital durante a pandemia Covid-19, deitando por terra crenças profundas e anos de inércia à volta da possibilidade de fazer alguns tipos de mudanças. Mas tal como Crozier nos ensina, estas fendas ou brechas nos sistemas burocráticos ou comportamento burocrático, são janelas que se abrem ou espaços que se movimentam por algum tempo, apenas e exclusivamente enquanto o problema estiver por resolver. Quando estiver ultrapassado, alguns dos homens e mulheres que beneficiam com a manutenção do status quo, encontrarão formas de perpetuar as velhas formas de fazer as coisas, caso não se atue rapidamente e de forma congruente. A burocracia persiste no mundo organizacional como resultado da necessidade consciente de controlo e de poder, da incapacidade para pensar sistemicamente e da inconsciência em torno do impacto do comportamento individual no coletivo.

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“Crises internas ou externas, constituem excelentes oportunidades de mudança. Isso explica em parte a velocidade com que num espaço de tempo record, tantas organizações foram capazes de passar de um universo presencial e físico para um universo on-line e digital (…)”
Os custos da burocracia

A perpetuação da burocracia nas organizações tem um preço muito elevado no reforço da conformidade, como já foi dito, mas vai muito além disso. A conformidade é uma grande inimiga da liberdade e da criatividade humanas, e da mudança. Como tal, tem impacto na capacidade das organizações para reter pessoas talentosas, e que querem encontrar espaços de criação, de realização pessoal e profissional; espaços onde muitas esperam ser felizes. A capacidade de atração, retenção e mobilização de talento diminuiu e irá continuar a diminuir nas organizações de pendor burocrático.

A conformidade retrata modelos mentais centrados na resolução de problemas e desafios operacionais e no cumprimento dos papéis e das regras. A identidade, valor e segurança é estabelecida por se estar em conformidade com as expetativas dos outros, a quem se reconhece mais poder e legitimidade para decidir. É esperado que essa conformidade resulte em segurança e validação externa, para legitimação pessoal. Tem o benefício da lealdade, da dedicação e da previsibilidade. A necessidade de corresponder a expectativas, de pertencer e de fazer o que é esperado, resulta em comportamentos de maior passividade, menor assertividade, decisões tomadas para não desapontar, falhar ou gerar conflito, jogar de acordo com as regras, agir para ser aceite e preservar a segurança. A forte presença de comportamentos de conformidade nas culturas de liderança, limitam a liderança visionária, estratégica, autêntica, de criação de valor, de responsabilidade por ações e decisões e a criatividade e tomada de risco; limitam por isso a mudança e a inovação.

Os modelos tradicionais de liderança assentes em controlo e conformidade, estão ainda fortemente enraizados nas culturas de liderança, existindo um ciclo de dependência entre o exercício do controlo e do poder e a conformidade, que se autorreforça e que mantém as organizações presas a alguns dos velhos padrões de liderança. Nem sempre este facto é reconhecido ou inteiramente consciente.

Como inocular e acelerar a agilidade
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“Transformar uma organização, tornando-a mais ágil, mexe com aspetos tradicionais da organização e da cultura da empresa.(…)”

Como caminho para a agilidade, Gary Hamel sugere que se contabilizem os custos da burocracia, se aprenda com aqueles que estão, no seu entender, na vanguarda, como a Buurtzorg – https://www.commonwealthfund.org/publications/case-study/2015/may/home-care-self-governing-nursing-teams-netherlands-buurtzorg-model ou a Nucor – https://store.hbr.org/product/nucor-at-a-crossroads/793039 –, se adotem novos princípios, ajustados aos problemas da atualidade e que se maximize e potencie a criatividade e a resiliência humanas, humanizando o modelo de gestão e começando exatamente do ponto em que se está, ativando a colaboração e a interdependência na organização.

Não é particularmente difícil desenhar processos, abordagens e planos de gestão da mudança para fazer transformação nas organizações. E é verdade que com processos e sistemas que desburocratizam a empresa, ela torna-se progressivamente mais ágil. Mas para acelerar a transformação e a mudança é necessário transformar a personalidade burocrática que existe em cada líder, porque a burocracia está enraízada no tecido e sistema social da empresa.

Transformar uma organização, tornando-a mais ágil, mexe com aspetos tradicionais da organização e da cultura da empresa. Pressupõe:

  • Agilidade na tomada de decisão “outside-In”, o que mexe com a estrutura de poder hierárquico
  • Agilidade na ação colaborativa e no diálogo, o que mexe com silos funcionais, poder e práticas de trabalho
  • Modelos de trabalho flexíveis, o que mexe com carreiras e sistemas de GRH convencionais
  • Velocidade a experimentar e a aprender em modelos interdisciplinares, o que mexe com o poder simbólico associado aos papéis tradicionais e ao conhecimento técnico.

A transformação cultural e organizacional só se dará com a transformação da cultura de liderança, porque a cultura de liderança é a base da cultura organizacional. São os líderes que criam e desenvolvem a cultura da organização, a partir das suas estruturas de pensamento e de ação.

Só haverá agilidade organizacional quando as empresas investirem seriamente no desenvolvimento das suas culturas de liderança, apoiando os seus líderes a fazerem um upgrade no seu sistema operativo – alterarem a forma como pensam, se relacionam e agem uns com os outros e ao serviço da empresa. Esta deverá ser a 1ª prioridade para qualquer empresa que queira estar preparada para lidar com os desafios do século XXI – a de fortalecer o seu sistema humano e a sua cultura de liderança! Voltarei a este tema no próximo artigo.